terça-feira, abril 08, 2008

O Rio não merecia essa

Na cidade que concentra a nata da saúde pública, como se explica uma epidemia de dengue? **

Luiz Hildebrando P. da Silva* - O Estado de S.Paulo

SÃO PAULO - O Rio de Janeiro é a cidade brasileira onde se concentra o maior número de nossos melhores cientistas e técnicos em ciências da saúde: em entomologia, que é a ciência dos mosquitos; em virologia, com especialistas em dengue e outras viroses; em infectologia; e, principalmente, em saúde pública, com a Escola Nacional de Saúde Pública, a famosa ENSP, da Fiocruz.

Como se explica então que o Rio seja vítima atualmente de uma epidemia de dengue que escapa ao controle das autoridade de saúde da cidade e dos municípios da Baixada Fluminense, assumindo caráter de emergência nacional? E que o governo do Estado seja obrigado a apelar para as Forças Armadas e para a comunidade médica nacional, solicitando pediatras em caráter de emergência a fim de enfrentar uma situação que, entre os cientistas e profissionais da área, era perfeitamente previsível?

E mais ainda, como explicar que o Rio de Janeiro, berço do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituinte de 1988 sob a influência e liderança de gente como o então deputado Sérgio Arouca, que vinha dessa mesma comunidade, seja vítima de uma epidemia que revela a precariedade da saúde pública preventiva na cidade e no Estado do Rio de Janeiro?
Eu diria que o Rio não merece essa situação. E diria ainda que é necessário entender e explicar as causas dessa precariedade e tirar ensinamentos para o futuro. Senão, como na Idade Média, voltaríamos às rezas ao Senhor de Bonfim.

Mas as explicações existem. Vejamos, pela ordem.

Os constituintes de 1988 nos dotaram de um instrumento original e ambicioso para gestão da saúde no País: o Sistema Único de Saúde. Para cumprir os compromissos de responsabilidade, universalidade e integralidade de suas ações, o SUS define a hierarquização das intervenções em níveis de complexidade crescentes, dispostos em áreas geográficas e populações delimitadas. A vigilância epidemiológica e o controle da situação de doenças endêmicas são de responsabilidade da atenção primária. Uma fração limitada de casos exige a transferência de pacientes para as estruturas de atenção secundária (centros de saúde e policlínicas) ou terciária (infra-estrutura hospitalar).

A dengue - como a gripe - não é doença para ser controlada pela infra-estrutura hospitalar. É para ser tratada em nível domiciliar pelas unidades de saúde básica com suas equipes do Programa de Saúde da Família (PSF) - médicos, enfermeiras, entomologistas, agentes de saúde, responsáveis pela visitação domiciliar. Não existe tratamento específico para a dengue. A doença exige, como a gripe, repouso e cuidados gerais da saúde. Antipiréticos outros que os salicilatos. Cuidados na alimentação e na ingestão de líquidos para evitar a desidratação que acompanha os processos febris, em particular em crianças e idosos. Os agentes são igualmente instruídos e devem ser capazes de identificar casos isolados suspeitos de gravidade que necessitam, estes sim, atenção médica e remoção para centro de saúde e, eventualmente, para hospital.
Mas uma série de fatores veio complicar o desenho original dos nossos constituintes. Primeiro, a proliferação de favelas de crescente extensão em tamanho e população nos grandes centros urbanos do País acarretou uma dificuldade maior para as intervenções de saúde primária porque aumentaram as situações de risco e violência para os agentes de saúde e, ao mesmo tempo, o potencial de criadouros de mosquitos.

Segundo, a legítima demanda popular por serviços de saúde tendeu a ser crescentemente atendida por pressões de interesses corporativos de profissionais e proprietários de hospitais. Proliferaram também interesses políticos particulares na criação, investimentos e gastos com o setor hospitalar de maior complexidade, escasseando assim os recursos públicos para o nível preventivo e primário. Com a deterioração da assistência básica, é óbvio que a demanda popular por atendimento pressionou os níveis de atendimentos superiores, criando um círculo vicioso, inclusive de desconfiança em relação à qualidade do atendimento de saúde primária. Especialistas e autoridades conhecem bem essa situação.

Chegamos assim às primeiras causas da situação de descontrole da epidemia de dengue no Rio de Janeiro: a situação de acentuada precariedade da rede de atendimento de saúde primária.
Mas há outras que podemos chamar de socioculturais. A tradição do autoritarismo político que justifica e leva, a cada mudança de ministro ou secretário de governo, à troca não apenas dos responsáveis de primeiro escalão na administração respectiva, mas do segundo, do terceiro e, às vezes, até do servidor de cafezinho. Com isso não há continuidade de políticas e, principalmente, não há memória das intervenções anteriores. O autoritarismo político leva ainda a conflitos entre administrações de municípios vizinhos e/ou governos municipais e estaduais, quando os interesses políticos pessoais ou partidários bloqueiam as interações e convergências político-administrativas necessárias ao bom desempenho de políticas de saúde.

Que cenário seria de esperar no caso de ameaça de epidemia, mesmo com uma implantação precária da rede de atenção primária à saúde no Rio e na Baixada Fluminense? Algumas das equipes do PSF teriam alertado a Secretaria da Saúde sobre aumento de casos febris de crianças e adultos, com quadros clínicos suspeitos de dengue. A Secretaria de Saúde do Município alertaria a congênere do Estado e ambas conduziriam um inquérito para verificar a etiologia das infecções com confirmação da dengue e identificação do sorotipo viral correspondente. A partir daí, não seria mais necessária a confirmação laboratorial de cada caso suspeito, mas apenas de amostras em diferentes localidades da área para confirmar a etiologia. Confirmado o início de epidemia, as secretarias conjugadas desenvolveriam uma ativação das intervenções de controle vetorial e um reforço das unidades de atenção básica e de equipes do PSF, com a criação de novas unidades em áreas carentes. Uma célula de comando das ações seria organizada - com participação de especialistas da Fiocruz e das universidades - e , de posse das informações acumuladas, traçaria um plano de campanha, reforçando as estruturas de diagnóstico e atendimento dos centros de saúde (atenção secundária) e, se necessário, convocando voluntários entre estudantes de medicina e de enfermagem, agentes de saúde, aposentados, etc. Ao mesmo tempo, a célula de comando organizaria pela televisão e pela mídia uma campanha de informação e de alerta à população.

Ao contrário disso, aos primeiros sinais da presente epidemia, responsáveis da prefeitura e do Estado iniciaram um debate sobre as responsabilidades mútuas alheias no processo. Jornais e televisões, sem orientação das autoridades de saúde respectivas, lançaram-se em campanha de alerta pouco educativa e muito alarmista, insistindo na incidência maior em crianças - o que é verdade e era esperado - e na letalidade observada, que "seria maior que a considerada normal pela Organização Mundial da Saúde", o que está longe de ser comprovado. Essa associação - mais em crianças e com maior letalidade - criou pânico entre as mães e corrida aos hospitais, o que, em seguida, fez ultrapassar a capacidade de atendimento da rede hospitalar pública e levou às conseqüências que se seguiram, reduzindo as autoridades de saúde à condição de simples bombeiros.

Temos hoje o privilégio de viver em democracia, em que o debate e a imprensa são livres. Mas políticos, lobistas e jornalistas deveriam pensar em suas responsabilidades republicanas, sobretudo no que diz respeito à saúde pública, deixando as autoridades responsáveis trabalharem tecnicamente - é claro, numa perspectiva permanente de emergência e reemergência de doenças transmissíveis, mais graves e complexas que a dengue, que ameaçam a humanidade, oriundas da globalização, das mudanças climáticas e da crescente mobilidade populacional. É necessário agir com a perspectiva, por exemplo, da possível ocorrência de uma epidemia de gripe aviária (neta da gripe espanhola de 1918), que se delineia aqui e ali pelo mundo. É preciso que, se ela aqui chegar, nosso sistema de saúde pública e medicina preventiva já tenha adquirido sua maturidade e o necessário fortalecimento.

E para que meus prezados e doutos colegas do Rio e de Brasília não pensem que eu, modesto sanitarista da província, esteja querendo ensinar padre-nosso a vigário, dizendo alto daqui, o que todos pensam baixinho por lá, vou pedir algo a eles em troca. Que digam alto por ai o que nós daqui estamos anunciando baixinho, preventivamente, em Rondônia sobre epidemias a evitar, nas áreas de impacto das usinas hidrelétricas do Rio Madeira. Não se trata de epidemia de dengue porque esta já está correndo por aqui, mas as mães e a criançada, acostumadas a barras mais pesadas, tiram de letra. Trata-se de possíveis epidemias de malária, febre amarela, febre tifóide, hepatites A e gastroenterites, repetindo o drama que aconteceu muitas décadas atrás na construção da Ferrovia Madeira-Mamoré.

*Luiz Hildebrando Pereira da Silva, parasitologista, é membro da Academia Brasileira de Ciências, professor honorário do Instituto Pasteur de Paris e diretor do Instituto de Pesquisas em Patologias Tropicais de Rondônia .

**Publicado no caderno “Aliás” do jornal O Estado de São Paulo, em 6 de abril de 2008.

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